sábado, 13 de março de 2010

CULTURA E IDEOLOGIA

Estudaremos, agora, uma questão que continua em discussão nas ciências sociais, que é a existência de duas formas específicas de cultura em nossa sociedade: a cultura popular e a cultura erudita.
O que seria erudito? O que seria popular? O que distinguiria o popular do erudito? A que grupo ou classe social poderíamos associar cada um desses conceitos? Haveria algum critério de valor a separar esses conceitos, isto é, seria possível ou correto compará-los e julgá-los? O “popular” relaciona-se ao povo; o “erudito”, à elite (ou classe dominante, se preferirmos). Essa seria, sem dúvida, a associação mais imediata a ser feita com esses conceitos. Mas para fazer ou não essa associação é preciso analisar os porquês daquela oposição inicial. Por que distinguir dois tipos de cultura e dar a eles valores diferenciados?
A questão da existência de uma cultura popular versus uma cultura erudita implica modos diferenciados de ser, pensar e agir, associados aos detentores de uma ou de outra cultura. Falar em cultura popular significa falar, simultaneamente, em religião, em arte, em ciência populares – sempre em oposição a um similar erudito, que pode ser traduzido em dominante, dada a dimensão dicotômica (dominante versus dominado) que caracteriza a sociedade capitalista.
Mas como defini-las e distingui-las? A pergunta permanece. Há autores, como veremos adiante, que dizem já não ser possível pensar em cultura puramente popular ou puramente erudita numa sociedade como a nossa, integrada e padronizada pela cultura de massa, ou indústria cultural. Outros autores discordam dessa postura, diferenciando não duas, mas três culturas, em constante inter-relação: a cultura popular, a cultura erudita e a indústria cultural, esta última muitas vezes atuando como uma espécie de ponte entre as duas primeiras. Mas, por enquanto, tentemos nos fixar especificamente na discussão ainda não resolvida, como já foi dito, referente à compreensão do erudito e do popular na contraditória sociedade capitalista que vivemos.
Cultura erudita e cultura popular: o que são e quem as produz?
Definir cultura erudita aparentemente não ocasiona grandes problemas. Ao pensarmos em cultura erudita, quase automaticamente a associamos ao plano da escrita e da leitura, do saber universitário, dos debates, da teoria e do pensamento científico. Já definir cultura popular não é assim tão simples. Na verdade, definir cultura popular representa uma polêmica que cientistas sociais, historiadores e pensadores da cultura em geral mantêm até hoje. E, se essa polêmica ainda existe, é possível concluir que há várias definições de “popular”.
Ao pensarmos em cultura erudita, imediatamente concluímos que seus produtores fazem parte de uma elite política, econômica e cultural que pode ter acesso ao saber associado à escrita, aos livros, ao estudo. A resposta já não é tão imediata quando perguntamos quem são os produtores da cultura popu1
lar. Mas afirmar que os produtores da cultura erudita fazem parte de uma elite não significa dizer que essa cultura seja homogênea. Para os antropólogos Gilberto Velho e Eduardo Viveiros de Castro, é impossível definir cultura erudita, porque não podem ser homogeneizados os elementos culturais produzidos por intelectuais, fazendeiros, empresários, burocratas, etc. Porém, é igualmente impossível definir cultura popular, dadas as produções culturais diferenciadas de camponeses, operários, classes médias baixas, etc.
De qualquer forma, não podemos perder de vista que o espaço reservado na sociedade para cada uma das duas culturas é bastante diferenciado. Enquanto a cultura erudita é transmitida pela escola e confirmada pelas instituições (governo, religião, economia), existe uma outra cultura que não se encontra nos esquemas oficiais. Mas onde está essa cultura? Para descobrir o seu lugar, pensemos nas definições que os estudiosos têm dado ao conceito de cultura popular. O historiador inglês Peter Burke define a cultura popular como uma cultura não oficial, do povo comum. Nesse sentido, o autor segue o pensamento de Antonio Gramsci, para quem a cultura popular é a cultura do povo, e os seus produtores são as classes subalternas. Para Gramsci, a cultura popular, por ser ligada à tradição, é conservadora. No entanto, por ser capaz de incorporar e reconstruir novos elementos culturais, é também inovadora.
Segundo o antropólogo brasileiro Carlos Brandão, quem faz cultura popular ou folclore (voltaremos mais tarde a esse conceito) nem sequer imagina que o que faz tem um outro nome, tem uma ou outra definição, causa ou não causa polêmicas entre intelectuais. As populações que os estudiosos aproximariam do conceito e da prática da cultura popular (ou do folclore) vivem, têm suas atividades cotidianas, divertem-se, têm suas maneiras de ver o mundo e entender a vida, cantam, dançam, sentem e trabalham. Essas coisas seriam cultura popular? Essas coisas seriam folclore, ou, como Brandão ouviu em suas andanças pelo interior do Brasil, “focrore”?
Além disso, talvez seja importante refletir sobre mais uma última questão: que pessoas se interessam por essas definições? E aqui a resposta é rápida: mais do que aos próprios produtores da chamada cultura popular, essas questões interessam aos estudiosos, que, por sinal, numa associação mais imediata, seriam associados à elite e à esfera da cultura erudita, já que lêem, escrevem e debatem.

Cultura popular e cultura erudita: conflito e incorporação
A questão presente em todos esses movimentos culturais, dos mais antigos aos mais recentes, refere-se à real definição do popular e do erudito. Se o popular fosse considerado exclusivamente como tradição e, portanto, como algo a ser conservado e protegido, introduzir guitarras elétricas no que se convencionou chamar de “música popular brasileira” seria inaceitável (e, de fato, isso causou escândalo na década de 60, quando o Tropicalismo e mesmo a Jovem Guarda de Roberto Carlos surgiram – e com eles, as guitarras, os cabelos compridos, as calças apertadas).
o 1Se, por outro lado, o erudito significasse somente aquilo a que se convencionou chamar de “belas-artes”, música e teatro clássicos, não se poderia pensar na transcrição para a linguagem plástica, escrita e musical de imagens, poemas e canções do folclore (e estes, por sua vez, só seriam folclore, ou cultura popular, se fossem passados oralmente, de pai para filho, sem alterações, ao longo dos séculos).
Como sabemos, nada disso acontece. Numa sociedade complexa como esta em que vivemos, não é possível ignorar as inter-relações estabelecidas entre a cultura erudita e a cultura popular e sua importância no próprio estabelecimento e manutenção da sociedade. A cultura erudita procura compreender e incorporar elementos da cultura popular (segundo muitos autores até para melhor dominá-la). Isso não significa, porém, que a cultura popular não resista a essa incorporação e não incorpore e reelabore, ela mesma, elementos tradicionalmente associados à cultura erudita.
Para compreender todas essas inter-relações é preciso pensar que todos os elementos enumerados no início do item “Cultura popular e cultura erudita no Brasil” – festas, literatura, culinária, religião, etc. – trazem em si a organização político-econômico-cultural do país, suas regras, suas contradições. Apesar de estarem associados imediatamente a uma certa visão do povo e da cultura popular brasileira, da elite e da cultura erudita, esses elementos não são necessariamente harmoniosos nem estão parados no tempo. Ao contrário, vão se transformando, ao longo da história e das relações sociais, num movimento dinâmico e incessante que é o que caracteriza o ser humano e a vida em sociedade.
Para ilustrar, poderíamos utilizar o exemplo da feijoada. Com o passar do tempo, ela deixou de ser comida de escravos e passou a ser um símbolo de nacionalidade, sendo servida não só nos restaurantes simples como nos requintados. Para compreender a cultura e seus significados, é necessário acompanhar as etapas de transformação de seus elementos, como no exemplo da feijoada, e tentar descobrir as suas causas. Existe uma tendência a se considerar tudo aquilo que se relaciona com a cultura popular como algo antigo, ultrapassado, que precisa acabar e dar lugar ao novo, ao moderno (em geral associado ao erudito). Curiosamente, muito do que se convencionou chamar de velho e ultrapassado é associado também à identidade nacional, isto é, àqueles elementos que fazem com que uma determinada população se identifique como um grupo de pessoas possuidor dos mesmos interesses, objetivos e visão de mundo; em resumo, que se identifique como nação. Esses elementos, se por um lado reforçam a identidade, por outro acabam estimulando a padronização de gostos, interesses e necessidades, fazendo com que as pessoas se esqueçam de que vivem em uma sociedade por definição contraditória, já que dividida em classes. A indústria cultural vai ser um elemento-chave para pensarmos nessas questões.

Nelson Dácio Tomazi, Iniciação à Sociologia, São Paulo, Atual, 1993, p. 179-182, 190-191.

2 comentários:

  1. Nos tempos atuais ao seguimos um blog ou sermos seguidos, formamos uma verdadeira teia, capaz de ter um alcance quantitativo e qualitativo para matérias formativas e informativas, que mídia alguma consegue ter. Já imaginou se os pré-socráticos e pós-socráticos tivessem tal meio divulgador na sua época? A história seria outra! POR ISSO PARABÉNS PELO BLOG.

    Aproveito para CONVIDAR VOCÊ, seus seguidores e quem você segue, para lerem matéria sobre o espetáculo SAGRADO E PROFANO, que ocorrerá na cidade de Senador Pompeu, interior do Ceará, no pequeno Distrito de Engenheiro José Lopes. Experiência artística que mobiliza toda a população, que além de encenar a Paixão de Cristo ainda tem os caretas, que há cerca de 70 anos, saem pelas ruas. Experiência artística, social, política, folclórica, econômica..... que merece ser relatada, imitada e, sendo possível, vista e visitada ao vivo. Boa leitura em:

    www.valdecyalves.blogspot.com

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  2. Boa noite Valdecy.
    Obrigado pela sua visita. é muito honrroso para nós termos contato com pessoas que estão geograficamente longe, mas que pelas buscas e perspectivas comuns se tornam tão próximas. Certamente indicarei a leitura sugerida aos meus alunos e amigos e espero mantermos contato.
    Um abraço

    Aparecido

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