terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

QUESTIONANDO-SE SOBRE A PRÓPRIA EXISTÊNCIA


Irmãos
_ De vez em quando eu penso neles...
_ Quem?
_ Nos espermatozóides...
_ De vez em quando você pensa nos seus espermatozóides?
_ Nos meus, não. Nos do meu pai.
_ Você está bêbado.
_ Na noite em que eu fui concebido... suponho que tenha sido uma noite... eu era um entre milhões de espermatozóides. Mas só eu cheguei ao óvulo da mamãe. Ou seriam bilhões?
_ Acho que é óvulo mesmo.
_ Não. Os espermatozóides. São milhões ou bilhões?
_ Ahn... Não sei.
_ Não importa. Milhões, bilhões. Só eu me criei, entende? Por acaso. Isso é o mais assombroso. A gratuidade da coisa. Havia milhões, bilhões de espermatozóides junto comigo e só eu, entende?, só eu fecundei o óvulo. Não é assombroso?
_ É.
_ Você acha mesmo?
_ Acho.
_ Podia ser qualquer um, mas fui eu. Por acaso.
_ Amendoim?
_ Hein? Obrigado. Agora, me diga. Por que eu? A gratuidade da coisa. Só eu fecundei o óvulo, virei feto, nasci, me criei e estou aqui, neste bar, de gravata, bebendo. Agora me diga, o que é isso?
_É como você diz. A gratuidade da coisa.
_ Não, não. Isso que eu estou bebendo.
_ É, ahn, uísque.
_ Uísque. Pois então, aí está.
_ Ô Moacyr, vê outro aqui. O rapaz está precisando.
_ Um brinde!
_ Um brinde.
_ A eles!
_ Quem?
_ Aos espermatozóides que não chegaram ao óvulo da mamãe. Aos companheiros. Aos bravos que cumpriram sua missão e não vieram para comemorar. Aos que perderam a viagem. Aos meus irmãos!
_ Aos meus irmãos!
_ Meus irmãos. Você não estava lá.
_ Aos seus irmãos!
_ Aos milhões, bilhões que se sacrificaram para que eu pudesse viver.
_ Salve.
_ Agora me diga uma coisa.
_ Duas. Digo duas.
_ Cada espermatozóide é uma pessoa diferente, certo? Quer dizer. Em outras palavras. Se outro espermatozóide tivesse comnpletado a viagem, não seria eu aqui. Ou seria?
_ Depende.
_ Não seria. Seria outra pessoa. Outro nariz, outras idéias. Talvez até torcesse pelo América. Uma mulher! Podia ser uma mulher. Certo?
_ Não vamos exagerar...
_ Então, imagina o seguinte. Pense bem. Amendoim.
_ Amendoim. Estou pensando nele. Amendoim.
_ Não. Me passe o amendoim e pense no seguinte, Se entre os espermatozóides que me acompanharam, e que não chegaram ao óvulo, estava o cara que ia descobrir a cura do câncer? Hein? Hein?
_ Certo.
_ Mas em vez dele, eu é que cheguei. Por acaso. Ou podia ser uma mulher. Uma soprano de fama internacional. Em vez disso, deu eu. Veja a minha responsabilidade.
_ Acho que você está sendo radical._ Não. Imagina se em vez do espermatozóide que se transformou em Jânio Quadros, tivesse dado outro. A história do Brasil seria completamente diferente! É ou não é?
_ Mais ou menos.
_ Pois então. Eu me sinto culpado, entende? Acho que eu devia, sei lá. Ter feito mais da minha vida. Em honra a eles. Eu estou aqui representando milhões, bilhões de espermatozóides, cada um uma pessoa em potencial. E o que é que eu fiz da minha vida?
_ E se fosse um bandido?
_ Como?
_ Se , em vez de você, o espermatozóide que tivesse dado certo fosse uma assassino, um mau-caráter. Não quero falar dos espermatozóides do seu pai, mas num grupo de milhôes sempre tem uma ovelha estragada. Uma maçã negra. Estatísticamente.
_ Você acha mesmo?
_ Acho.
_ Sei lá.
_ E outra coisa. O que passou, passou, Não pense mais nisso.
_ Mas eu penso. De vez em quando eu penso. Os meus irmãos que não nasceram. Que nomes eles teriam? Eduardo, Gilson, Amaury, Jéssica...
_ Marco Antônio...
_ Marco Antônio... Imagine, um deles podia ser o ponta direita que o Brasil precisava em 74. Eu me sinto culpado. Você não se sente culpado?
_ Bom, eu tenho 11 irmãos.
_ Aí é diferente.
_ Por quê?
_ Não sei. Só sei que entre milhões, bilhões de espermatozóides, todos com os mesmos direitos, só eu me criei. Por acaso. Agora me diga, o que é isso?
_ É uísque.
_ Não. É a gratuidade da coisa.
_ Não sei...
_ Você está bêbado.
Luis Fernando Veríssimo. O analista de Bagé. p. 19-22

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